por Marcelo Miranda
CAÇADOR DE MORTE (The Driver) é um filme de transição na então iniciática trajetória de Walter Hill. Fica entre sua estreia relativamente modesta em LUTADOR DE RUA (Hard Times, 1975) e o impacto de THE WARRIOR (1979) – ainda que mal recebido na época, este é até hoje seu filme de maior referência, mesmo Hill tendo feito 48 HORAS (1982). O suspense policial com Ryan O’Neal, Bruce Dern e Isabelle Adjani deu continuidade à parceria entre Hill e o produtor Larry Gordon num trabalho que assumidamente presta tributo a O SAMURAI (1967), do francês Jean-Pierre Melville na atmosfera seca, na inexpressividade do personagem principal e no enredo simples que, trabalhado com estilo e rigor, ganha contornos intimistas dentro do contexto de um filme de ação.
Parecia algo fora do normal mesmo para a Hollywood do fim dos anos 1970. Já existiam BULLITT (Peter Yates, 1968), OPERAÇÃO FRANÇA (William Friedkin, 1971) e PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), trinca de policiais renovadores do gênero no período, com estilos mais naturalistas e tramas fincadas no noticiário real (assassinos seriais, traficantes, assaltantes). Nenhum deles, porém, continha estilo tão austero como o de Hill em Caçador de Morte. O filme transborda a gelidez ambicionada pelo diretor, como se toda emoção tivesse sido expulsa das cenas. Sem nem sequer dar nome a algum personagem, o enredo encaminha os acontecimentos, instante a instante, até o desfecho que mantém vários elementos em aberto.
O’Neal, já tendo interpretado outro personagem de baixa expressividade (no grandioso BARRY LYNDON, de Stanley Kubrick, em 1975), circula com desenvoltura num ambiente propositadamente esvaziado de sentimentos. A constante face de desconforto e má vontade, com as sobrancelhas arqueadas e a testa enrugada, dão a impressão de que o personagem está ali apenas mesmo pela obrigação de cumprir o trabalho para o qual está contratado. A francesa Adjani, presença luxuosa, vai e vém como uma femme fatale nunca claramente desvendada. O policial vivido por Dern, com seu jeito algo misantropo e irônico, é o único a se “soltar” um pouco mais nos comentários sarcásticos e na pompa de dono da razão. O embate de olhares entre ele e O’Neal no clímax é tão forte quanto um tiroteio bem encenado.
Ainda que seja apenas sua segunda direção, Hill tem controle absoluto do tempo e da ação em CAÇADOR DE MORTE. Os primeiros 20 minutos são dos mais impressionantes exemplares do cinema de ação norte-americano em décadas, influência tão grande que chegou a ser explicitamente emulada também na sequência inicial de DRIVE (2011), de Nicolas Winding Refn, entre vários outros. Sem usar trilha musical e elevando os sons de motores, derrapadas e respiração dos envolvidos, as perseguições de carro impressionam pela destreza da montagem (assinada por Tina Hirsch e Robert K. Lambert), pelo controle de Hill na mise-en- scène e pela longa duração.
O enredo desenvolvido entre as cenas de ação, quase sempre algo não muito importante em filmes similares, aqui carrega sentido pessoal: a tentativa do policial de capturar o “cowboy” tem menos o objetivo de fazer justiça do que provar a própria razão de que o motorista está efetivamente envolvido nos assaltos. A disputa clássica entre homens de moral particular (independente dos lados da lei) tem grandes exemplares no cinema, o maior deles ainda sendo FOGO CONTRA FOGO (Michael Mann, 1995). CAÇADOR DE MORTE tem quinhão significativo nessa história.
Hill ainda tateava e arriscava, no começo da carreira, um filme com jeitão de maduro. Para muitos, é seu melhor trabalho. Deixando de lado qualquer hierarquização, o que fica evidente na revisão de CAÇADOR DE MORTE (especialmente pela alta qualidade da versão em Blu-ray que circula atualmente) é o rigor de um cineasta para quem a ação física e as relações entre o corpo e o mundo são elementos essenciais no trato com a imagem. Em LUTADOR DE RUA, era um corpo contra outro. Aqui, são os carros contra os carros e também olhares contra olhares. Hill busca filmar o movimento e o choque e tudo que acontece entre um e outro. Aqui ele experimenta, com os recursos mais básicos de uma linguagem em construção, a potência desse caminho.