A MONTANHA SAGRADA (The Holy Mountain, 1973)

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por Leopoldo Tauffenbach

Não é fácil digerir o cinema de Alejandro Jodorowsky. Menos ainda talvez seja escrever qualquer coisa a respeito de seus filmes. E a situação pode ficar ainda mais complicada quando tratamos de A MONTANHA SAGRADA.

Pode-se dizer que o filme representa o auge da confluência criativa entre Jodorowsky, o cineasta, e Jodorowsky, o mago. Nunca antes um filme fora tão bem sucedido ao capturar a poderosa essência imagética dos símbolos místico e religiosos. E vale notar aqui que religioso não tem nada a ver com crenças institucionalizadas, mas com o aspecto humano que lida com tudo o que é misterioso, invisível e sobrenatural.

A fantástica sequência de abertura de A Montanha Sagrada, anunciando seu complexo devir.

A fantástica sequência de abertura de A Montanha Sagrada, anunciando seu complexo devir.

Não por acaso Jodorowsky inicia o filme deixando claro que a religião, quando instituição, é um produto humano, criado à revelia de valores verdadeiramente míticos e universais. Vemos animais esfolados e crucificados levados e adorados por uma procissão. Enquanto isso, um circo de animais realiza uma apresentação que conta a história da derrota dos astecas “pagãos”, representados por lagartos, pelos espanhóis católicos, personificados por sapos obesos. Independentemente do que dizem os livros de história, ambos os lados perdem nesta insanidade circense, brutalizados por uma grande explosão que transforma sapos e lagartos em uma massa de carne moída e chamuscada indistinguível.

O protagonista desta história surge como um homem qualquer. Ou alguém tão comum que preserva uma ignorância quase infantil, ainda imaculada. Vivendo em meio ao caos de uma grande metrópole, ele chega a uma torre onde habita um mago. Lá ele passa por uma série de situações e rituais transformadores, que o prepararão para sua verdadeira missão: alcançar a lendária Montanha Sagrada.

O personagem principal em um rito de trasformação interior.

O personagem principal em um rito de trasformação interior.

Desde o início do filme, fica evidente todo o conhecimento de Jodorowsky sobre o oculto, eternizado em película em imagens memoráveis. Símbolos e rituais alquímicos, maçônicos, astrológicos, egípcios e até mesmo o repertório imagético e simbólico do tarô se integram para dar base à narrativa. Mas o que inicialmente poderia parecer um balaio de gatos oriundo de alguma mente hippie adepta da Era de Aquário revela, na verdade, toda a precisão de Jodorowsky em encontrar denominadores comuns aos mais diversos aspectos das manifestações humanas e divinas, incluindo até certos fundamentos da psicanálise e da psicologia Jungiana.

Os companheiros de viagem reunidos antes de partir rumo à montanha Sagrada. Cada um possui uma representação astrológica que os aproxima aos arquétipos jungianos.

Os companheiros de viagem reunidos antes de partir rumo à montanha Sagrada. Cada um possui uma representação astrológica que os aproxima aos arquétipos jungianos.

Para os não familiarizados com o cinema de Jodorowsky e os imaginários místicos apresentados no filme, A MONTANHA SAGRADA pode ser um filme completamente ininteligível. Mas a verdade é que tal conhecimento prévio é completamente desnecessário se o espectador simplesmente deixar-se levar pela viagem proposta pelo diretor. Este é um filme capaz de estabelecer uma linha de comunicação direta com o inconsciente. Qualquer tentativa de racionalizar seu conteúdo em busca de “entendimento” pode resultar frustrante, principalmente se considerarmos o final, de uma simplicidade revoltante para nós, criaturas excessivamente racionalizadas e acostumadas a receber respostas para todas as nossas questões.

A MONTANHA SAGRADA não quer responder nada. Pode ser a saga do herói de Joseph Campbell, o processo de individuação de Jung ou a história do cachorrinho Samba. Não importa qual dessas alternativas se adequariam mais à proposta do filme. A real intenção de Jodorowsky é propor que nós voltemos a nos encantar mais com as perguntas do que com as respostas. E por isso mesmo, A MONTANHA SAGRADA não se basta em ser só um filme. É uma verdadeira experiência de vida.

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14 thoughts on “A MONTANHA SAGRADA (The Holy Mountain, 1973)

  1. Luiz Alexandre

    Definitivamente vir ao Dia da Fúria me faz perceber que perco meu tempo vendo bobagens, hehehe. Adorei o texto, Leopoldo. Não conheço praticamente nada sobre Jung, o máximo que sei sobre psicanálise são certos conceitos freudianos e lacanianos que um professor meu me ensinou. Acho que darei uma lida em algum lugar sobre esse processo de individuação, mas somente depois de assistir ao filme.

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    1. Leopoldo Tauffenbach

      Eu sugiro começar pelo melhor básico de todos, que é “O Homem e seus Símbolos”, da Editora Nova Fronteira, justamente escrito para leitores leigos. Mas se você já quiser pegar pesado, pode procurar nas obras completas, publicadas pela Editora Vozes, os livros “Aion- Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo” e “Psicologia e Alquimia”. Este último com certeza encontraremos na cabeceira de Jodorowsky!

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  2. mrlx

    A Montanha Sagrada
    Direção: Alejandro Jodorowsky
    The Holy Mountain, México/EUA, 1973.

    Por Daniel Salomão Roque

    “A Montanha Sagrada” não é um filme convencional. A princípio, isto pode soar demasiado óbvio, tornando inevitável o surgimento de sorrisos sarcásticos na cara dos leitores que já tiveram o privilégio de assistir a esta obra-prima; no entanto, nunca é demais avisar. Lançado em 1973 na mostra não-competitiva do Festival de Cannes, dois anos após “El Topo” ter se tornado uma febre no circuito underground americano, este clássico absoluto do cinema extremo é estranho e indigesto até mesmo para os padrões de Jodorowsky. Imagens delirantes, fragmentos de puro absurdo, flagrantes que desafiam nossa concepção da realidade e a falta de qualquer concessão fazem desta fita uma das experiências mais perturbadoras de toda a sétima arte.

    Para nos transportar ao universo da história, Jodorowsky optou por uma estrutura bastante rígida, constituída por um prólogo e três partes. No prólogo, somos cúmplices do ritual iniciático onde uma espécie de guru, trajado de negro da cabeça aos pés, com o rosto encoberto por uma imensa cartola e acompanhado de duas mulheres, desnuda ambas, retira seus ornamentos (maquiagem, penduricalhos, etc) e raspa suas cabeças, terminando por posicioná-las cara a cara, unidas pela testa. Arrebatadora, esta seqüência aparentemente desconexa deságua na primeira parte, onde testemunhamos o despertar de um homem primitivo, fisicamente idêntico a Jesus Cristo que, ao lado de um anão sem braços nem pernas, vaga pelo centro histórico do México numa jornada pontuada pelas mais diversas heresias e bizarrices. O destino deste homem se cruza com o de um misterioso alquimista (interpretado pelo próprio Jodorowsky), que após submetê-lo a algumas provações espirituais, o coloca em frente aos seres mais poderosos do universo. Aqui tem início a segunda parte do enredo, onde os seres em questão, um a um, se apresentam ao espectador: dizem seu nome, de qual planeta do Sistema Solar vieram, seu ramo de atividade financeira, mostram sua vida cotidiana e discursam sobre seus ideais. Findas as apresentações, o alquimista revela o objetivo por trás daquele encontro: o grupo ali reunido partiria numa viagem mística em direção ao cume da Montanha Sagrada, moradia de nove entidades imortais que secretamente governam o cosmos; chegando lá, destituiriam estes governantes, se converteriam em deuses e tomariam para si o controle de tudo o que existe, num percurso tortuoso que marca a conclusão da trama.

    O que nas mãos de alguém menos habilidoso e excessivamente apegado a regras desembocaria num esquematismo digno de bocejos, nas mãos de Jodo se transforma em instrumento de subversão. Longe de ser uma ferramenta castradora, esta divisão apenas realça a força anárquica do filme, já que ao escrevê-lo o chileno não teve o menor pudor de virar do avesso todas as normas vigentes nos manuais de construção dramática. O prólogo não é nenhum pouco auto-explicativo, os primeiros quarenta minutos praticamente não possuem diálogos, a apresentação dos personagens dura quase metade da obra e o único fiapo de conflito surge apenas nos momentos finais (ainda assim, de maneira completamente surreal). Por fim, a narrativa que embala esse verdadeiro pandemônio é ultra-fragmentada, convertendo em semi-curta-metragens cada uma de suas esquisitíssimas cenas. E que cenas!

    Tido como o mais chocante capítulo da filmografia jodorowskyana, “A Montanha Sagrada” é também o mais engraçado. Suas metáforas transbordam deboche: além do supracitado grupo de megalomaníacos que literalmente desejam destronar as divindades para governar o universo a seu bel-prazer, temos um cego-surdo-mudo que só toma decisões depois de esfregar os dedos no clitóris da falecida esposa (lubrificado equivale a “sim”, seco equivale a “não”); aparatos tecnológicos que permitem aos mortos interagirem nos seus próprios funerais; uma máquina de fazer sexo cuja vagina mecânica dá à luz um bebê-eletrônico; condomínios de luxo onde as casas nada mais são que claustrofóbicos caixões (chamados de “abrigos”), e por aí vai. Muito de seu choque é oriundo desse obscuro senso de humor: a toda hora e sem nenhum resquício de piedade, a obra nos cospe algumas verdades bastante amargas, de forma tão absurda e escandalosa que a nós, só nos resta rir; se não rimos da constrangedora percepção de que temos muito em comum com pessoas tão desprezíveis, na melhor das hipóteses a repulsa causada pela barbárie desenfreada irá tratar de meter um riso nervoso em nossos lábios.

    A ganância, futilidade e falta de escrúpulos do ser humano são alguns dos principais alvos de Jodorowsky, mas não os únicos: tão ou mais visado que os sentimentos mencionados, é o caráter antiquado e alienante das religiões organizadas. Muito embora haja várias cenas que não nomeiam os bois, ou que se direcionam a mais de uma instituição, o catolicismo é disparado o grande foco de pedradas. Sendo cinema na sua mais pura essência, o filme evidentemente não aborda estes assuntos através de discursos intermináveis, mas com fotogramas que primam pela singularidade, iconoclastia e beleza pictórica. Por exemplo, numa cena que emula a ambientação dos épicos italianos da década de 60, o homem primitivo (sempre acompanhado do anãozinho aleijado) é obrigado a percorrer uma Via Crucis contemporânea, interrompida por um convite à bebedeira feito por soldados romanos. Inconsciente de tanto ingerir álcool, ele é colocado nos braços de um gordão bigodudo vestido como Virgem Maria, numa citação direta à Pietà, a famosa escultura em que Michelangelo retrata a mãe de Jesus segurando o corpo do filho. Desmaiado, é levado a um galpão e tem o corpo moldado com banha de porco, gerando a matriz de milhares e milhares de imagens religiosas, meras quinquilharias comercializáveis; posteriormente, já acordado, encontra-se com seus apóstolos: doze prostitutas, entre elas uma criança com cerca de oito anos de idade, que voltam da igreja onde fazem ponto. Para expressar-se com tamanho grau de eficiência fazendo uso de tão poucos diálogos, Jodorowsky se inspira em dezenas de referências artísticas, e o resultado é um mosaico de peças díspares e fascinantes. Iconografia esotérica, arte sacra, atmosfera surrealista, arquitetura gótica, linguagem de HQ, expressionismo, kitsch, pop art, pintura abstrata, psicodelia, Fellini, Buñuel, civilizações pré-colombianas, mitologia grega e cultura popular mexicana jamais formaram um conjunto tão coeso quanto o que vemos aqui.

    Não raras vezes, o anti-clericalismo confunde as pessoas, fazendo um bocado de gente pensar que o cunho do filme é ateísta. Ledo engano: misticismo e espiritualidade pululam por todos os poros da película, sendo reverenciados de maneira muito particular. Neste sentido, o final da fita é o caso mais ilustrativo tanto das crenças de seu autor quanto do equívoco de parte do público. Quando o grupo chega ao cume, descobre que tudo não passava de uma farsa elaborada pelo alquimista, que ri da situação e revela a grande verdade oculta: todos eles são míseros personagens de um filme. A câmera se afasta, vemos a equipe técnica carregando equipamentos no set de gravação e ouvimos um conselho: “Digam adeus à Montanha Sagrada, a vida real nos aguarda”. Se por um lado isso parece indicar que a busca pelo sagrado é inútil pelo simples fato de que essas coisas não existem, a lembrança de que Jodorowsky é um dos tarólogos mais requisitados do mundo e uma assumidade em esoterismo nos sugere uma outra conclusão: a busca pelo sagrado é sim inútil; não pela sua inexistência, mas pela sua onipresença – a iluminação não é atingida através do isolamento e do auto-sacrifício em prol de uma meta inatingível; ela ocorre na vida cotidiana, com a percepção de que o divino e o sublime se manifestam em tudo o que possamos imaginar. Interpretações a parte, ao escancarar o caráter ilusório da odisséia de seus personagens, Jodorowsky confirma sua mais conhecida frase: “Eu exijo do cinema o que os americanos exigem das drogas psicodélicas”.

    ***
    fonte:
    http://www.revistazingu.net/2008/01/dj-amontanhasagrada.html

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  3. mrlx

    A MONTANHA SAGRADA

    O público culto europeu está às voltas com um filme com o qual não sabem muito o que fazer: A Montanha Sagrada, terceiro filme (Fando e Lis, A Toupeira) do russo-chileno Alexandre Jodorovski, atualmente vivendo nos Estados Unidos, após longa estadia na França onde fundou o movimento “Pânico” com os surrealistas Arrabal e Topor. A Montanha Sagrada, grande produção colorida, foi iniciada no México, onde Jodorovski viveu uns tempos. Mas as filmagens irritaram pessoas bem pensantes e o filme teve que ser terminado nos Estados Unidos. A luxuriante imaginação de Jodorovski e seu excepcional poder para a criação de imagens-choque justificam o sucesso deste filme, mas a mistura de misticismo de inspiração oriental com o tarô e o cristianismo constitui um conjunto de difícil entendimento, que as pessoas tentam simplificar dizendo tratar-se de um caleidoscópio sobre o tema da busca da purificação, da busca do ser autêntico, ou então “não posso dizer que gostei ou não, mas nunca vi um filme tão bizarro”.

    Como este filme, sob muitos aspectos excepcional, não será tão logo exibido no Brasil devido a problemas de distribuição e outros, é o caso de tentar uma breve descrição para o leitor brasileiro, embora o filme não se preste a descrições.

    Na primeira parte, o filme sugere por metáfora uma sociedade onde imperam a violência e a religião. Roupas e arquitetura sugerem o México. Enquanto jovens são fuzilados em praça pública, turistas americanos fotografam os pássaros que vão saindo do peito dos jovens cadáveres. Um circo é apresentado: um símbolo do México, os Incas sendo representados por camaleões emplumados. Das caravelas, saem legiões de sapos vestidos de guerreiros e monges para destruir o império dos camaleões. Da destruição geral, emerge um jovem barbudo e cabeludo que vive uma paródia grotesca da paixão de cristo, reproduzindo indefinidamente a sua imagem; na igreja, o cristo encontra o altar vazio, enquanto o bispo está numa cama barroca com uma estátua de cristo.

    Na segunda parte, o jovem que viveu o cristo encontra uma espécie de grão-mestre que o inicia à alquimia, transforma suas fezes em ouro e o apresenta aos grandes deste mundo. São sete personagens cujos nomes são os de planetas do sistema solar: são industriais de cosméticos (que fazem desaparecer o homem debaixo do que ele parece); de artefatos bélicos; de objetos de arte comercializados; de brinquedos; um conselheiro econômico (que recomenda a exterminação de milhões de pessoas para solucionar o problema da distribuição de renda); um chefe de polícia; um arquiteto-urbanista. Cada planeta conta a sua vida. Por exemplo, o fabricante de brinquedos consulta o governo para saber quais serão as guerras futuras e daí deduz os brinquedos que devem ser produzidos, de modo que as crianças, quando adultas, venham a odiar o futuro inimigo; no caso, ensina-se às crianças a odiar o Peru. Ou então, o industrial em artefatos bélicos fabrica um gás que dá vontade de ser herói e, após respirarem esse gás, soldados ensangüentados lançam-se com euforia sobre baionetas caladas. Ou então, a iniciação para ingressar nas armas é a castração, e o chefe superior, ao praticar mais uma castração, completa seu museu de mil testículos, enquanto o castrado está pronto para as honras, a obediência e a matança, o que é testado. Quanto ao urbanista, propõe que, para as gentes mais comuns, se substitua o conceito de casa pelo desabrigo, e apresenta seu protótipo: um arranha-céu composto por caixões individuais, o conjunto apoiado em dois caminhões fossa para evacuação dos excrementos.

    O grão-mestre, na parte final do filme, convence os sete poderosos do mundo a iniciar a grande busca em direção à imortalidade. O primeiro passo para tal busca é se desfazer do poderio e da riqueza, o que todos fazem. Em seguida, eles entram em contacto com um camponês, tendo que vencer o nojo que lhes inspira o fedor do homem; do mesmo modo, eles têm que fazer grande esforço para aceitar a comida humilde e mágica de uma camponesa. Após vencerem outros obstáculos, inclusive a tentação de recuperar o antigo poderio, eles chegam à montanha sagrada, percebendo que a imortalidade não é nenhum segredo, apenas uma renúncia ao poder, particularmente ao poder de matar. Neste momento, o grão-mestre, interpretado pelo próprio Jodorovski, manda a câmera recuar. Enquanto se descobre a equipe de filmagem e seu equipamento, o grão-mestre Jodorovski diz que se trata apenas de um filme, recomenda que os espectadores retornem ao mundo para agir com novas idéias, e todos os atores encaminham-se para o morro ao pé do qual se dá esta última seqüência.

    Pode-se perceber no filme, a existência de duas linhas estilísticas diferentes. A primeira se refere ao início do filme, até o cristo encontrar o grão mestre e às sete biografias. A segunda corresponde ao processo de iniciação e a longa busca da purificação e da imortalidade.

    A primeira refere-se ao negativo, ao que Jodorovski rejeita, à opressão, à morte, à destruição, à guerra, ao inumano. Á imaginação do diretor se situa na linha de um barroco sensual, violento e sangrento. As imagens surgem com forte poder de impacto, sem significação precisa, mas se abrindo para uma multiplicidade de sugestões relacionadas com um certo sistema social. Citemos dois exemplos: um desfile de coelhos esfolados, crucificados em baionetas caladas, na frente de uma igreja barroca. Ou um baileco à meia luz onde dançam casais masculinos, um homem de tipo comum abraçado com uma espécie de autômato sem rosto, composto por um uniforme e uma máscara de gás. Este baile é a própria imagem do terror cotidiano.

    A segunda linha se refere ao positivo na concepção de Jodorovski, ao humano, à libertação. A encenação, o guarda-roupa, a cenografia apresentam um caráter mais frio e abstrato do que na linha anterior. Indiscutivelmente o filme cai de nível, torna-se às vezes monótono, quando não ridículo (a transformação dos excrementos em ouro). As figuras geométricas (que um conhecimento do tarô e da cabala permitiriam provavelmente entender melhor), as superfícies e as cores lisas, os gestos rituais e comedidos dão ao filme um tom de laboratório, em comparação ao caos borbulhante da outra linha.

    Estes comentários sobre o estilo do filme levavam a colocar um problema interessante. Jodorovski é poderoso quando transpõe para seu mundo poético uma sociedade que oprime e que ele rejeita; mas é inseguro e quase artificial quando aborda as possibilidades de superação do negativo. Afinal o positivo em A Montanha Sagrada nada mais é do que os poderosos deste mundo aceitando, por influência do grão-mestre, renunciar a seu poder. O processo de evolução da história e as possibilidades de uma transformação social resultam de uma mudança de atitude da elite dirigente, sem nenhuma participação de outros setores que compõem uma sociedade. A história torna-se um palco iluminado onde evoluem vedetes, cujo comportamento decide tanto do mal como do bem da sociedade. Esperar que os poderosos deste mundo simplesmente abdiquem de seu poder parece ser um dos aspectos do mundo poético de Jodorovski. E nisto, ele não é o filho de Buñuel que mostrou em O Diário de uma Camareira que nestas situações, não é a elite dirigente que se transforma, mas sim o individuo que penetra nela com a intenção de transformá-la.

    O filme de Jodorovski é extremamente sintomático e por isto de relevante importância: a própria construção dramática do filme revela um momento histórico vivido por poetas da América Latina. As decepções provocadas por fatos históricos nos últimos 10-15 anos podem levar à esperança – talvez errônea, mas muito difundida – de que as transformações sociais positivas podem surgir apenas das vedetes, sem uma participação mais ampla. Essa é uma forma de poesia que pode até se alastrar pela América Latina.

    Mas é possível que nem o próprio Jodorovski esteja muito convencido da concepção histórica que informa o seu filme. O final é de fato ingênuo e contraditório. Ingênuo, pois revelar o filme como filme, atualmente, não passa de um chavão. Contraditório, porque, após ter dito que o filme não era senão uma fábula e os personagens apenas atores, estes se encaminham para a “montanha”. Quer dizer que, ao mesmo tempo, Jodorovski interrompe e dá prosseguimento ao movimento de purificação dos poderosos deste mundo.

    É difícil escrever sobre um filme para leitores que não o viram. Mas é um esforço de informação que deve ser tentado e é possível que este artigo, se bem lido, possa despertar algum interesse.

    Jean-Claude Bernardet

    (publicado originalmente em Revista Cinema nº 4, São Paulo: 1974)

    fonte:

    http://www.contracampo.com.br/90/artjodobernardet.htm

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  4. mrlx

    JODOROWSKY E A ESTÉTICA DA ILUMINAÇÃO

    – Acredito que a única meta de toda atividade humana – seja ela política, arte, ciência, etc. – é alcançar a iluminação, atingir o estado de iluminação. Peço do cinema o que a maioria dos norte-americanos pede das drogas psicodélicas. A diferença é que quando alguém cria um filme psicodélico, não precisa criar um filme que mostre as visões de uma pessoa que tomou pílula; antes, ele precisa fabricar a sua pílula. Acho que a viagem de Alexandre, o Grande, é uma viagem psicodélica. Muitos dizem que Alexandre era um idiota, porque sua conquista era tão grande, tão completa, que à medida em que ele progredia em conquistar o mundo, estava realmente avançando no sentido de seu fracasso final. Penso que Alexandre estava viajando até as profundezas do ser. Acho que Ulisses foi outro grande viajante. Quero viajar pela rota da “Odisséia”. Quero viajar pela rota de Alexandre. Quero viajar até as áreas mais profundas do meu ser para atingir a iluminação.

    Essas palavras são de Alejandro Jodorowsky, o cineasta de El Topo, recente sensação do cinema de vanguarda internacional. Ele tem 43 anos de idade, nasceu no Chile, de pais russos, trabalhou em teatro na França e, atualmente, mora no México, onde rodou seu filme. Ele próprio conta sua história, numa longa entrevista publicada na edição em livro do roteiro de El Topo (Douglas Book, New York):

    – Dirigi muitas peças no teatro da universidade e trabalhei muito com mímica. Na época, estava com vinte e três anos e tinha uma companhia de cinqüenta pessoas. Depois, fui para Paris onde estudei com Etiene Decroux, que foi o professor de Marceau e de Barrault. Trabalhei com Decroux por seis anos e escrevi duas mímicas para ele, The Mask Maker e The Cage; fiz também uma viagem por todo o mundo com ele.

    – Éramos três na companhia. Também dirigi Maurice Chevalier quando ele retomou sua carreira no L’Alhambra Theatre.

    – O show teve tanto sucesso que o teatro passou a chamar-se Chevalier. Fui também o primeiro a dirigir Michel Legrand e o apresentei no L’Alhambra. Durante um ano dirigi o Trois Baudets Theatre com Canetti, o empresário, Raymond Devos e Guy Behart começaram naquele teatro. OK. Há tantas coisas. Depois fui para o México onde dirigi mais de cem peças. Fiz, de Ionesco, As cadeiras, Vítimas do Dever e O Rei sai. Fiz esta última com o melhor ator do México, Lopez Tarso, num teatro de oitocentos lugares. Tivemos casa cheia todas as noites. Fiz Fim do Jogo, de Samuel Beckett, Ghost Sonata, de Strindberg, e uma adaptação de seu Dream Play. Montei também peças surrealistas e escrevi uma com Leonora Carrignton.

    – Voltei a Paris e fundei um grupo de Teatro do Pânico com Arrabal, Topor e Sternberg. Montamos um happening em Paris que durou quatro horas. Arrabal menciona freqüentemente esse happening em sua autobiografia.

    – Eu o dirigi. Ferlinghtti o viu e o publicou no seu City Lights Journal. Arrabal me pediu para escrever sobre minhas teorias sobre o teatro para sua revista teatral. Um número inteiro.

    – Mas não pude fazê-lo porque minhas teorias sobre teatro mudam a cada três horas.

    Além de toda esta atividade, Jodorowsky escreveu contos, peças etc. (Panic Stories, Panic Games, Panic Theatre) e publica num jornal mexicano uma tira de histórias em quadrinhos, Panic Fables, que ele mesmo escreve e desenha. Seu primeiro filme, feito em Paris, era baseado na novela Cabeças Trocadas, de Thomas Mann.

    Depois dirigiu sua própria versão de Fando e Lis, de Arrabal: apresentado no Festival de Acapulco, em 1968, o filme foi considerado “corrosivo e corruptor”. As autoridades mexicanas ainda recusaram enviá-lo representando o país, e só permitiram sua exibição depois de meia hora de cortes.

    Seu novo filme, A Montanha Sagrada, está pronto para ser lançado. Jodorowsky descreve a si próprio:

    – Às vezes, eu me sinto absolutamente louco.

    – Digo: o que é que estou fazendo aqui? Porque sinto a realidade tão irreal e eu mesmo tão estranho. Tenho uma mente, um fígado, um coração. Tudo que olho e sinto está dentro de mim mesmo.

    – Não é a realidade. Sou apenas uma enorme reação. Não é a coisa. Não estou sentindo.

    – Sou o que é sentido. O homem que sente.

    – Tudo é tão subjetivo. Se alguém me diz que estou louco, digo que sim, estou absolutamente louco como toda a civilização e todas as pessoas do planeta. Acho que toda a humanidade agora está totalmente biruta e louca.

    – E em certos dias, quando a minha essência vê a mim mesmo, como meu ego é biruta e louco, eu rio – com amor e compaixão. E no momento que você tem a iluminação, você começa a rir.

    – Porque você vê a si mesmo, como você é biruta e louco Então você sente compaixão. Tenho muita pena de mim mesmo porque sou tão biruta e louco.

    El Topo é uma estranha obra surrealista. Jodorowsky escreveu o roteiro, desenhou cenários e figurinos, compôs a música, dirigiu o filme e interpretou o papel principal. É uma complicada alegoria da busca espiritual de um homem, entremeada de sangue, sexo e violência, cheia de citações sutis e referências eruditas.

    Uma simbologia livre domina as cenas. Diz Jodorowsky:

    – Há muitas maneiras de falar. Você pode gritar para uma pessoa ou falar muito suavemente. Normalmente, um filme fala para certas partes do ser humano. Fazemos uma distinção entre a parte atlético-muscular do ser humano e sua vida sexual, sua vida mental e sua vida emocional. Eu não falo para nenhum desses centros. Eu falo com o meu inconsciente para o seu inconsciente.

    – É outra espécie de linguagem.

    – Estou tentando colocar os sonhos na realidade e não a realidade em sonhos. Quando você senta comigo para ver o filme, o que estou tentando fazer é colocar os seus símbolos na realidade. Cada um de nós tem seus símbolos inconscientes.

    – Você tem tudo na sua mente. O homem não é um criador. Mas o homem está descobrindo o tempo todo. O que estou tentando fazer é usar símbolos para despertar alguma reação no seu inconsciente. Tenho muita consciência do que estou fazendo porque os símbolos podem ser muito perigosos. Quando usamos linguagem normal, nós podemos nos defender porque nossa sociedade é uma sociedade lingüística, uma sociedade semântica.

    – Mas quando você começa a falar, não com palavras, mas somente com imagens, as pessoas não podem se defender. É por isso que ou você ama ou odeia um filme como esse. Você não consegue ficar indiferente.

    Jodorowsky procura, com sua nova atitude, um foco para a arte ocidental contemporânea. As linhas tradicionais de pensamento que orientavam as poéticas pessoais dos nossos criadores perderam o sentido. Esgotamos aparentemente todos os ângulos de análise e, contudo, todo o trabalho ainda está para ser feito. Queremos retratar a condição humana, mas ficamos perdidos entre os incontáveis reflexos desse jogo infinito de espelhos que é a mente. Na verdade, essas imagens são reflexos vazios que não correspondem a nenhum objeto comum e substancial, do qual elas pudessem refletir supostos aspectos essenciais, devido ao fato simples de que não há nenhum objeto assim. O real é o próprio jogo vazio de imagens e a arte, que pretende representá-lo tem necessariamente a mesma natureza. A vida é sonho – e os sonhos também são sonhos. O sonho é apenas a tomada de idéias, imagens mentais para as quais não há nenhum objeto correspondente. Perseguimos o segredo de uma alucinação pois, a cada instante, o que estava aqui já não está mais, nem aqui nem em parte alguma.

    Jodorowsky dedicou-se à prática de vários sistemas orientais de meditação e, hoje, preconiza o esvaziamento mental para que a iluminação interna possa se manifestar. O cineasta conheceu os métodos de vários gurus hinduístas, que o introduziram a ioga, e passou dois anos como discípulo de um mestre Zen. As relações entre mestre e discípulo constituem um dos temas centrais de El Topo: o personagem principal precisa matar quatro mestres que vivem no deserto, para criar o seu próprio caminho, e todos os quatro consentem de bom grado em serem eliminados. Seu novo filme, A Montanha Sagrada, conta a história de um mestre que toma nove pessoas – o que forma “um sistema solar”, segundo Jodorowsky – e promete a elas a imortalidade. Eles devem buscá-la na montanha sagrada. Diz Jodorowsky:

    – A única coisa que um mestre pode ensinar é como você mesmo pode aprender. Não há segredos. Nossos mestres são os animais e as crianças. As crianças são tão fantásticas. E o que é que elas fazem? Elas brincam.

    Bem, nós devemos brincar. Jogos fantásticos. O jogo da iluminação. Brincar para falar com Deus. Jogos que podem, brincados no universo, serem fantásticos. A viagem astral pode ser um jogo muito lindo. A reencarnação – que jogo!!!

    Reencarnar em qualquer espécie de coisa. Fantástico! O jogo de morrer. O jogo de se casar. O jogo de ter filhos. O jogo de ficar doente. O jogo de ter câncer. O jogo de matar uma pessoa na guerra. Todos os jogos.

    Todo nosso movimento é um sonho. Comece com seu corpo. Fique confortável. A solução é ter a coragem de ver o seu ego; como ele é realmente. E dizer – Maya, Maya (ilusão, ilusão) – e pôr de lado seus problemas. Mas você tem de conhecer seus problemas para pô-los de lado. Quebre o reflexo condicionado. Mate seu passado, mude seu nome, modifique os seus movimentos. Limpe sua mente. Limpe seu coração. Limpe seu sexo. Ponha ordem em seu sexo, seu coração, sua mente. Seja um cara novo. Mude todos os seus hábitos. Acho que cada um de nós tem, no seu inconsciente, a idéia de sua própria perfeição. Este corpo não é o meu corpo porque não fiz este corpo. Recebi este corpo. Recebi minha vida. Eu não fiz minha vida. Minha vida não é realmente minha vida. É um presente. E este corpo surge da sabedoria universal. A chave para todos os símbolos é o corpo humano. Ele tem tudo. Nosso inconsciente é infinitamente sábio. Ele conhece nossa perfeição. Nós podemos ser perfeitos. Nós podemos ser o homem completo. Acho que nesta civilização nós não somos o que nós somos. Estamos abaixo de nossas possibilidades. Abaixo. Mas estamos aprendendo, como crianças. Sou muito otimista. Mas esta sociedade lhe dá um sentimento falso de seu corpo. Ninguém lhe ensina que você não tem um corpo individual. Acho isso: nós temos um corpo social. Se há doença no mundo, eu estou doente. Se há crime no mundo, eu sou o criminoso. Se há um valor no mundo, eu tenho esse valor. Os judeus estão esperando o Messias – um homem-Deus que trará justiça ao mundo. Mas o verdadeiro Messias é um dia – o dia em que toda a humanidade terá a sabedoria. Será o dia do corpo coletivo e da alma única.

    A arte de vanguarda de nosso século se opôs a arte realista, à arte da visão social e da perspectiva histórica, com um decidido mergulho na subjetividade, procurando penetrar no fundo irracional de todas as coisas. É uma arte que quis pôr em questão a essência do mundo, uma arte metafísica e, portanto, especulativa, freqüentemente incendiada pela imaginação excitada e pela loucura. Foi esse tipo de arte que formou Jodorowsky: a arte do Teatro do Pânico, de Arrabal, que parece procurar o significado metafísico de paranóia, essa doença que ainda poderá caracterizar o nosso século. Mas o abismo do irracional não tem fundo: pode ser sempre cavado para mais longe, da mesma maneira que os edifícios conceituais da razão lógica podem ser sempre construídos e ampliados, sem limite. O pânico, experiência extrema, só pode encontrar solução em outra experiência extrema, a iluminação, que desmascara a ilusão e desnuda o vazio de todas as coisas. Esse tem sido o movimento do espírito de Jodorowsky. Ele evolui de mil símbolos e mil significados para a beleza simples do instante. Diz ele, quando pretendem apontar suas contradições:

    – Não me importo. Não estou tentando provar nada. Estou tentando ter um belo momento quando uma pessoa vem até mim. E quero que essa pessoa tenha um belo momento. Um momento de paz. Aprender alguma coisa. Fazer alguma coisa. Mas não estou tentando provar nenhuma espécie de doutrina. Acho que o significado de duas pessoas estarem juntas é o significado da cerimônia do chá. Há duas pessoas, o dono da casa e o visitante. O dono da casa oferece a casa mais bela que há, de certa maneira. Se tem uma casa pobre, é limpa e é bonita. Ele faz o chá da melhor maneira que puder. Mostra um quadro, o melhor que tiver. O visitante toma o chá com grande prazer. E ama a casa. E enquanto estão juntas, as duas pessoas esquecem o mundo. Sentem que estão vivendo na eternidade. Tomam o chá. Não são prisioneiros de nada. Aí, então, dizem adeus. Vão para outras casas. A experiência está terminada. Foi um belo momento e nada mais.

    A arte ocidental, hoje, sofre uma nostalgia secreta, mas viva, desses belos momentos. Artistas como Jodorowsky podem ajudar a redescobri-los.

    Luis Carlos Maciel

    (Publicado originalmente em O Jornal, Rio de Janeiro, 15-16 de junho de 1973.)

    ***
    fonte:

    http://www.contracampo.com.br/90/artjodoiluminacao.htm

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  5. mrlx

    A MONTANHA SAGRADA

    Num dia escuro e nublado no início de 1972, o néon reluzente de um redemoinho de cor, som e movimento circulou através e ao redor do distrito comercial perto do centro da Cidade do México. Alejandro Jodorowsky estava rodando uma das cenas de abertura de A Montanha Sagrada, um filme baseado em A Subida do Monte Carmelo, de São João da Cruz, e O Monte Análogo, de René Daumal. Trata-se de um filme sobre a busca do homem pela iluminação.

    Os filmes mexicanos raramente tinham sido famosos pela excelência artística ou comercial, mas este estava sendo seguido com um grande interesse por parte da comunidade cinematográfica internacional. Allen Klein, empresário dos Rolling Stones e de três dos Beatles, tinha posto $750.000 como financiamento inicial. O orçamento projetado era de $1.500.000, não muito se comparado ao parâmetro de Hollywood, mas a maior produção na história da indústria cinematográfica mexicana. Alejandro Jodorowsky, nascido no Chile, tinha trabalhado com Marcel Marceau em Paris, escrevendo duas das peças mais conhecidas do mímico, The Mask Maker e The Cage. Mais tarde, no México, ele dirigiu mais de cem peças, muitas delas para a televisão nacional, e se tornou uma grande celebridade no mundo da língua espanhola por suas radicalmente abrasivas performances teatrais. Seu primeiro filme, Fando e Lis, foi denunciado no Festival de Cinema de Acapulco em 1968 como “corrosivo e corruptor”. Ele foi exibido apenas durante um breve período nos Estados Unidos e nunca foi distribuído comercialmente no México.

    Seu segundo filme, El Topo, começou sendo exibido em sessões à meia-noite em Nova York no Ano Novo de 1971, no Elgin, uma sala não muito em voga consagrada à língua espanhola no bairro de Chelsea. Havia quase nenhuma propaganda, mas logo longas filas começaram a se formar. Muitos dos espectadores voltavam repetidas vezes. Algumas poucas críticas e entrevistas fortemente favoráveis apareceram na imprensa underground. Rapidamente o establishment começou a tomar nota. Não era algo com que pudessem lidar confortavelmente. El Topo era indescritivelmente estranho, diferente de tudo que qualquer um tinha visto antes.

    Resumir sua história é meio como tentar fazer a sinopse de The Faerie Queen ou Pilgrims Progress, dois clássicos trabalhos numa tradição similar de complexidade alegórica. Essencialmente, El Topo é a história de um heróico cowboy progredindo ao longo de uma paisagem de confrontações com outros heróis, que são todos derrotados por ele. Depois ele vai até um mestre Zen com um puçá de apanhar borboleta e acaba derrotado.

    O macho cowboy vestido de preto renasce como um simples dançarino doido que vive numa caverna com corcundas, aleijados, anões e outros rejeitados pela sociedade. Ele se apaixona por uma mulher minúscula. Eles saem da caverna e exibem danças cômicas numa cidade próxima. Há uma outra confrontação heróica e o dançarino doido mata todos seus inimigos e depois se queima vivo em uma cena chocantemente realista que lembra aqueles monges vietnamitas. (O efeito foi criado enxertando um esqueleto com carne de boi e tacando gasolina nele.) Em 1971, o New York Times publicou, em separado, três críticas de El Topo que eram mutuamente contraditórias. Vincent Canby achou que o filme era trabalho de um presidiário. Peter Scheidahl chamou-o de “uma alegoria vastamente complexa e profundamente cômica”. Roger Greenspun não pretendeu entender o filme mas supôs que ele provavelmente era muito menos pretensioso do que seus amigos estavam lhe dizendo. A coisa mais importante sobre El Topo foi que ele custou menos de $400.000 para ser produzido. Sua bilheteria ao redor do mundo é dada como próxima de $10 milhões. Grandes lucros sempre transcendem a crítica. Uma nota de pé de página no roteiro explica que El Topo significa topeira em espanhol, uma criatura que cava túneis na terra buscando pelo sol, atinge a superfície e fica cega. Steve Fuller, que chamou El Topo de “obra-prima” em Changes, comentou: “No fim das contas, El Topo é um homem que é cegado pelas descobertas… experimenta a luz branca e não mais precisa de seu corpo e, portanto, progride para um plano espiritual mais elevado”.

    A Montanha Sagrada é a continuação desse tema. A sinopse oficial descreve o filme desta forma: nove dos mais poderosos industriais e políticos dos planetas desejam obter a imortalidade. Um Alquimista lhes fala da Montanha Sagrada da Ilha de Lótus, onde moram nove imortais, que agora têm mais de 30.000 anos. “Alguns homens juntam forças para assaltar bancos e roubar dinheiro”, o Alquimista conta. “Devemos unir nossas forças para assaltar a Montanha Sagrada e roubar desses homens sábios o segredo da imortalidade. Mas para conquistar o segredo dos imortais, nós também devemos nos tornar homens sábios.” O Alquimista os leva em uma peregrinação, praticando várias formas de exercícios espirituais e visitando vários mestres até que eles encontrem a iluminação. No desfecho, eles acham os imortais e o segredo lhes é finalmente revelado.

    Alejandro, é claro, interpreta o Alquimista. Essas primeiras cenas no México não o incluem, mas se focam num personagem não mencionado na sinopse, o Ladrão, que vaga por uma série de episódios emblemáticos das doenças da sociedade moderna, acompanhado por um pequeno homem sem braço e sem perna.

    Nossa Senhora de Montserrat era uma locação marcantemente poética, sua abóbada rachada como um crânio de pedra fraturado com cavidades vazias que algum dia contiveram olhos de vitrais brilhantes. O lugar não é mencionado em nenhum dos manuais ingleses populares, mas um documento nos arquivos da seção Monumentos Coloniais do Departamento de História e Antropologia do governo mexicano revela que ele data de 1884 e foi começado com fundos doados aos monges beneditinos por colonos catalães que tinham se livrado de uma praga milagrosamente, após rezar pela Virgem de Montserrat.

    Para a filmagem de A Montanha Sagrada, o pátio da igreja estava coberto com lona branca e uma banda mariachi tocava enquanto os pedreiros pacientemente martelavam blocos de pedra para a restauração. Uma multidão de pessoas bisbilhotava da rua, onde dois grandes trailers soltavam tentáculos negros de fios de energia elétrica. Eles estavam assistindo a 50 jovens soldados de uniforme cinza com máscara de gás e capacetes e rifles dançando solenemente, cada um nos braços de um parceiro masculino vestido com roupas comuns de trabalho. Dentro da igreja, fora da visão dos homens dançando, um soldado e um trabalhador estavam encostados à parede se abraçando apaixonadamente. No final do santuário abaulado havia um altar de pedra arrumado com uma mesa de comunhão dourada e uma antiga Bíblia em cujas páginas abertas rastejavam vermes gordos rosados. Uma rede empoeirada de teias de aranha pendia de todo o cenário como se estivesse acumulada por séculos de tempo imemorial.

    Na outra extremidade, uma cama de bronze jazia parcialmente enterrada no chão de terra, com uma coruja viva repousando na sua cabeceira. Um jovem ator semi-nu, Horacio Salinas, “Lacho”, rastejou pelo chão arrastando um Jesus de gesso em tamanho real que ele colocou em cima do altar. A imagem tinha seu rosto e seu corpo. Ele rastejou de volta à cama, lentamente tirou a coberta, revelando um velho homem grisalho em trajes pretos de bispo dormindo nos braços de um outro Jesus de gesso em tamanho real.

    O bispo acordou irado, gritando em espanhol, “Este não é seu Cristo! É meu Cristo!”. Ele levantou respirando com dificuldade, puxou o Jesus do altar e o substituiu com o seu. De repente, um homem de terno marrom apareceu no centro do recinto, reclamando furiosamente em espanhol. Ele parecia um militar em roupas civis. “Pare!”, ele gritou. “Você está fazendo uma missa negra! Isso é trabalho do Diabo, blasfêmia e imundice! Não deixarei vocês hippies e homossexuais profanarem este lugar sagrado mais um minuto sequer! Parem ou matarei vocês!”. Esse era o Presidente da Sociedade dos Charros, um grupo de senhores tradicionalmente ricos que eram donos da igreja. Eles tinham sem querer cedido Nossa Senhora de Montserrat à Producciones Zohar, para um dia de filmagem de A Montanha Sagrada. Entre Jodorowsky e o charro houve uma grande discussão em espanhol rápido, eloqüente e ofensivo. O diretor explodiu. O charro entrou em colapso. Empresários e amigos ofereciam palavras apaziguadoras. O capitão da polícia intercedeu pela produção, elegantemente polido como um policial na capa de um romance espanhol, fumou um cigarro sem nenhuma expressão particular e cochichou para o charro, que então saiu irritado.

    Durante esse encontro, Lacho, o ator nu, pacientemente se apoiou alternadamente em seus pés descalços. Ele tinha interpretado a cena no mínimo por uns 20 minutos. Estava escurecendo lá fora e seus pés estavam dormentes por conta do chão frio e úmido. Ele estava entrando num estado de agonia física controlada, como Cristo aproximando-se da Cruz. Mais uma vez as luzes se acendem. Mais uma vez a cena com o bispo foi repetida. Em seguida o set foi mudado. Dessa vez o bispo empurrou Lacho até a porta, e depois atirou o Jesus de gesso na direção dele.

    Enquanto o crepúsculo adensava e condensava em noite líquida, Lacho abraçou a imagem e começou a comer seu rosto, lenta e amorosamente, mastigando pedaços grandes e macios e então engolindo agradavelmente. “Corta”, gritou Alejandro. As luzes se apagaram. Mais um dia de filmagem de A Montanha Sagrada tinha terminado. “Até agora nesse filme, eu estive em três locações e fui expulso de todas”, Alejandro disse alegremente. “Isso é o México”, disse Valerie, sua namorada há dez anos, mãe de seus três filhos. “Odiamos o México. Cagamos pro México.” “Ela diz isso porque ela é mexicana”, Alejandro comentou. “Você não pode dizer que odeia o México. Não é o México. É o planeta. Não existem países. Isso é uma idéia. Não há culturas. Isso é uma idéia. Toda cultura é a continuação de outra. Há tantos conceitos que devemos mudar. Quando aquele Marco disse pra mim: ‘Eu vou te matar”, eu disse ‘Ok, me mate, mas eu vou matar você’. E ele ficou com medo, porque eu realmente quero matá-lo, quebrar todos seus ossos, milímetro por milímetro – não os ossos do corpo, os ossos da mente. Precisamos matar algum espaço mental. Precisamos matar para sobreviver, destruir mentes. Quando eu digo ‘destruir’, digo abrir. Devemos abrir espaço para uma nova vida. Sempre estou tendo cenas de morte e sempre estou colocando nova vida em lugares mortos e coisas mortas. Não sei por quê. Talvez eu seja um profeta. Eu realmente espero que um dia venham Confúcio, Mohammed, Buda e o Cristo para me ver. E então sentaremos a uma mesa, tomando chá e comendo alguns brownies, que tal? E terei um dia bom. Você está com fome, Lacho?”, Alejandro perguntou carinhosamente. “Venha comer conosco”. “Não estou com fome”, disse Lacho. “Eu comi o Jesus. O que era eu não sei. Era doce como pão, mas não era pão. Nunca tinha provado nada assim”. Sua voz era repleta de uma satisfação latente que era verdadeiramente religiosa em sentimento. “O que era isso que comi, Alejandro?”. “Não sei. Taicher é quem fez. É um milagre, não?”. O rosto do Jesus era feito de pasta de amêndoa, mas Lacho nunca descobriu isso e a incrivelmente doce e saborosa experiência sem dúvida permanece simplesmente um milagre para ele. Pode ser que fuçando atrás do cenário você descubra que todos os milagres são feitos de pasta de amêndoa e fome. Não importam os ingredientes, a habilidade de produzir milagres é um talento miraculoso. Esse era o papel que Alejandro tinha escrito pra si mesmo. A questão de A Montanha Sagrada não era tanto a produção de um filme, mas a produção de mudanças na consciência das pessoas que o estavam fazendo.

    “Esse filme é minha própria busca por iluminação”, Alejandro disse. “Eu quero ser um Mestre. Eu penso em como é ser um Mestre. Eu leio sobre como é ser um Mestre. Eu me visto como um Mestre. Eu ajo como um Mestre. Eu me torno um Mestre”.

    O trabalho de Alejandro não agrada a todos os gostos. El Topo encontrou grande acolhida entre jovens intelectuais hippies (como talvez A Montanha Sagrada vá encontrar) porque era genuinamente diferente e obscuro, o perfeito veículo para um novo cult. Como The Wasteland, o pastiche simbolista de T. S. Eliot, ou o Ulysses de Joyce, ele era repleto de ingredientes para análise e interpretação, como se criado especialmente para teses acadêmicas, ensaios e conversas inteligentes. Era algo de que se falar. Ao mesmo tempo havia uma grotesca sátira por baixo disso tudo que era sempre hilária.

    Alejandro confrontou suas platéias com tudo que elas não queriam ver, não apenas desvios sexuais e violentos, mas o grotesco, o feio e o esquálido – todo o mundo que não aparece nos filmes convencionais, não aparece em Fellini, não o mundo das borboletas, mas das traças. Para algumas pessoas, ver El Topo foi um ato de purificação, purgando normas estéticas que pareciam racionais mas eram na verdade preconceito artístico.

    Uma tarde durante a filmagem de A Montanha Sagrada, Alejandro parou para uma entrevista. A locação era em Nacaulpan, uma zona industrial que buscava combinar todas as brutalidades da linha de montagem com as imundices não reconstituídas da Idade das Trevas. Assim que o gravador foi ligado, o barulho de uma ventoinha começou bem atrás dele. Alejandro se recusou a ir para um lugar mais calmo. “Por que esse lugar feio, o barulho, a sujeira, as moscas?”, perguntaram-lhe. “Não temos lugar feio”, Alejandro respondeu. “Não temos barulho. Não temos moscas. Um significado muito estranho, essas moscas. Nas jóias egípcias eles usam moscas. Era um animal sagrado. Acho que se você matar todas as moscas, o mundo vai acabar. Por que ela está aqui, eu não sei, mas eu acho que ela tem um significado sagrado para a ecologia. Toda mosca é uma abelha, porque está fazendo seu próprio tipo de mel. Talvez seja cocô. Não sei. Mas para ela isso é mel.”

    “Você não deve odiar as moscas. Você não deve odiar o lugar feio. Você não deve odiar o barulho. Qual a diferença entre barulho e música? A musica só é diferente porque tem pequenos momentos de silêncio. Se você tem o silêncio contigo, você não tem barulho, porque você põe todo o barulho no seu silêncio e faz música. Quando há luz dentro de você, toda feiúra se torna uma obra-prima.”

    Pode ser que esse pequeno sermão pareça apenas charmoso e fácil, um exercício de Pollyanna, mas quando você ouve a fita algo muito curioso e convincente acontece. O ruído da ventoinha persiste. Ainda assim, por um momento, há uma espécie de pausa profunda, uma breve calma, uma estranha harmonia.

    O trabalho de Alejandro e seu sucesso podem talvez se explicar como manifestações da revolução psicodélica. Durante a década passada o mundo parece ter sido dividido em dois grupos mutuamente opostos – aqueles que tomaram LSD e aqueles que não. A principal platéia de Jodorowsky é encontrada em meio àqueles que tomaram ácido, não uma única vez, mas repetidamente. Há um tipo de sincronia satisfatória na relação entre esse fato e a percepção de que a revolução psicodélica começou no México quando Timothy Leary comeu os cogumelos mágicos à beira daquela piscina em Cuernevaca. Tem havido um grande retorno à arte, às idéias e à cultura da América que existia antes da Conquista, a América dos deuses de milho e do cogumelo alucinógeno e do Índio nativo. O México é um dos grandes centros daquela cultura e os filmes de Alejandro Jodorowsky são eminentemente mexicanos. Somente nesse contexto você pode realmente começar a entender sua violência. Há uma apaixonante obsessão com a dor e a morte no México.

    Quando El Topo foi montado pra ser mostrado no México nenhuma das cenas violentas foi retirada, mas uma meia-hora de insinuação política e sexual foi censurada. De acordo com Sam Askenazy, o editor de entretenimento do The Matrix City Nova, um jornal em língua inglesa, Alejandro, que financiava seus filmes com recursos próprios, tinha permissão para agir por conta do investimento estrangeiro que ele levou ao país. “Eles admiram sua coragem”, ele disse. “É uma coisa meio macho. Nenhum dos outros produtores tem colhões”.

    Na comunidade intelectual americana, há uma certa impressão de que muito da loucura de Alejandro não deve ser levado a sério, seu simbolismo é apenas superficial, sem profundidade, uma artimanha qualquer. Isso não é bem a verdade. Virtualmente, cada frame em A Montanha Sagrada é o produto de uma elaborada pesquisa. Cada um dos nove personagens principais representa um planeta, e tem todas as qualidades mitológicas e astrológicas a ele associadas. É verdade, contudo, que se não houvesse nenhum simbolismo particular por trás de seus efeitos, Alejandro poderia prover alguns.

    Uma bela tarde no final de Junho de 1973, a imagem em Technicolor de uma das montanhas do México cobertas de neve persistiu longamente na tela de uma pequena sala particular não muito longe do Times Square, e então começou a se fundir no branco que ficava cada vez mais brilhante, até que não havia mais quadro algum, apenas a luz brilhante. “O que há para dizer?”, Alejandro anunciou alegremente quando as luzes se acenderam. “É fantástico! Parece uma produção de $10 milhões”. Era fantástico e de fato parecia uma produção de $10 milhões. Um pouco depois, Alejandro vagou pela Sétima Avenida de mãos dadas com uma garota alta e de cabelos castanhos. No dia seguinte ele ia a Bahamas visitar Valerie. Eles estavam então casados. Em cerca de uma semana, talvez ele fosse a Denver ficar num chalé nas montanhas. Ele pensava em fazer seu próximo filme The Story of O. Não havia pressa em decidir. Estava completamente livre. A Montanha Sagrada estava terminado. Alejandro Jodorowsky flutuou pela cidade.

    De volta à sala de projeção, a cópia de A Montanha Sagrada já estava guardada na lata esperando que o correio aéreo a levasse de volta a Hollywood, onde ajustes finais no som, nos cortes e nos créditos seriam feitos. Então o processo de fazer cópias adicionais começaria. Em dezembro, A Montanha Sagrada seria distribuído. Não havia forma de prever o que os críticos falariam do filme. No cair da noite, A Montanha Sagrada estava voando, em piloto automático. Toda a mágica tinha sido feita. Agora o processo mecânico de visão começava. Como uma semente no estômago de um pássaro, a cópia final de A Montanha Sagrada rumou para seu destinado espaço de germinação. Em alguns dias, folhas de luz balançariam na árvore da consciência. Mas, naquele momento, as nuvens de fumaça fabricadas pelo avião somavam mais um resíduo de poluição à antes transparente estratosfera.

    Jules Siegel

    (Originalmente publicado na revista Show, dezembro de 1973, pp. 20-29. Traduzido do inglês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)

    ***

    fonte:

    http://www.contracampo.com.br/90/artjodosiegel.htm

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  6. Caobe

    Parabéns pelo texto, curto porém de extrema sensibilidade. A montanha sagrada exige que o intelocutor se desligue da razão moralizante e reflita sobre o ponto de partida oculto e quase inconsciente que se faz de essência não só pra todos os indivíduos, mas de qualquer prática histórico-social da humanidade.

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